Escrevi-o em 1978. Pouco mais de uma década depois da situação real que me inspirou o conto!
Amanheceu depressa aquele Domingo de Outubro, 1967.
No largo do Posto, mal o sol espreitou,
bochechudo, por entre os cajueiros da mata, sentavam-se velhos negros,
encolhidos nas capulanas de caqui barato. Esperavam, em triste
paciência, carpindo para os cipaios madrugadores todas as desventuras da
sua noite mal dormida.
- Senhor, tem ali gente com milando grande! –
anunciava, solene, no seu jeito sério, o Cabo Sanica, chefe
incontestado dos cipaios administrativos da região.
O Carlos, ensonado, digerindo uma agitada
sessão de king, levantou a esteira da janela baixa e lançou um “já vou”
em contrariado bocejo. E o Sanica, depois de uns desajeitados
salameleques, foi regressando para junto do grupo.
O Carlos era um jovem de 19 anos. Viera,
havia pouco mais de um ano, das serranias beirãs para aquele sertão
africano fascinante e medonho, belo e arrepiante; caixa grande de
mistérios que, sonhador, se propusera desvendar. E os negros da área
achavam graça àquele “menino branco” idealista, ao seu espírito
aventureiro e despreocupado, qual fruto verde em chão maduro!... Mas,
talvez por isso, representava a seus olhos a rampa de lançamento,
através da qual faziam chegar até ao Administrador de Balama a sua nave
recheada de lamentações, pedidos e mal disfarçadas exigências.
O Administrador era já pessoa idosa, vestuta,
que eles não ousavam incomodar, talvez por respeito às barbas
majestosas implantadas numa carranca sisuda. Era um cabo verdiano
letrado, da Ilha de S. Vicente, branco ou crioulo oxigenado, e chefe
duma interessante família, pessoas de educação esmerada.
Quando o Carlos, ainda esfregando os olhos,
foi ao encontro do ajuntamento, por entre um interminável coro de
salamas, viu naqueles rostos de ébano um problema maior, bem diferente
das choramingas questões a que já o haviam habituado.
- Então o que se passa? O içar da bandeira é
só às oito horas e vocês vêm para aqui tão cedo? – perguntou, em tom de
graça para desenferrujar a língua muda do régulo Momola, um bondoso
preto de carapinha grisalha, ancião influente, guia espiritual duma
população e duma área mais vasta que todo o Alentejo; era admirado pela
sua sabedoria e pela verdade com que manifestava os anseios do seu povo,
de que era mandatário de linhagem.
- Tem garramo muito mau, senhor adjunto, está
comer nosso povo!... nosso pede ajuda, está sofrer muito..., e
continuava a explicar-se o melhor que sabia, no seu português estudado
na universidade das suas velhas rugas.
Depois, todos foram dando achegas, em
alvoroço: que era velho o leão solitário; entrara, noite dentro, numa
aldeia do Lúrio e levara a mamana do Jamisse; mas que andava havia já
muito tempo na região, pois saciara a sua sede e fome carniceira em
dezasseis vítimas, homens, mulheres e crianças...
- Então porquê só agora vêm dizer-mo?
-
Ah, senhor, nosso andava a preparar armadilha, mas aquele garramo não
tem bom, não! Tem esperto no cabeça: ginga, ginga, e não deixa
apanhar...-, e continuaram todos a descrever as animalescas façanhas da
fera.
Pelo que os desventurados negros narravam,
não era nada comum o comportamento do bicho. Aqueles métodos manhosos
assentavam melhor no leopardo, mas não no leão, um animal feroz mas leal
na sua agressividade.
Por tradição nativa, antes da imposição dos
aldeamentos, uma família agrupava-se dispondo em círculo as suas
palhotas maticadas, cobertas de capim seco e porta de bambu. Surgiam,
assim, pela floresta, núcleos habitacionais de quatro, cinco, seis
casas, em cujos intervalos brincavam os putos do clã.
E a velha fera, ao que contavam, bacharel em
caça, não se fazia rogada: alta noite, abeirava-se mansamente e
esgadanhava as unharras na parede frágil da palhota onde se alojavam os
catraios da família. E, enquanto os pais dormiam na casa ao lado, a uns
escassos dez metros, os miúdos acordavam assustados, gritando pelos
“velhos” em desespero. Mas o leão não forçava a entrada. A mãe dos
garotos acorria aos gritos aflitivos dos filhos e era recebida pelo
leão, de bocarra aberta, que a arrastava, presa nos seus caninos
devoradores, para longe, pois o macabro repasto era sempre em recatada
sala de micaias, na selva fechada.
Era este o ardiloso estratagema, como já
referi, pouco comum no comportamento habitual dos leões, mas utilizado
nos casos concretos que o Carlos foi ouvindo com um misto de
estupefacção e medo, enquanto coçava a meia dúzia de pêlos que lhe
despontavam no queixo esguio.
Que raio! Por aquela é que ele não esperava!
Fôra caçador, sim senhores, de pardais descuidados, de melros
desaninhados, caídos na sua fisga infantil..., mas qualquer cão rafeiro o
fazia fugir, hirto de medo, só pelo ladruçar raivoso, quanto mais uma
fera daquelas!...
Mas não era ele o adjunto do posto, aquela
gente não viera até ele procurando ajuda?! Não se sentia, pois, no
direito de lhes defraudar a expectativa... e eis o Carlos a encher o
peito de ar,, a vestir rija pele de valente, enquanto ia vertendo
consoladoras promessas de justiça e vingança nos coações condoídos pela
perda de familiares.
A seguir, foi vê-lo, qual D. Quixote do
Índico, a preparar os seus bravos Sanchos e a escolher as armaduras com
que havia de partir os dentes ao assassino.
A caçada ía começar...
- Sanica, chama mais dois cipaios. Traz também a tua Mauser. Vê se o Land-Rover tem gasóleo... e vamos embora!
- Senhor adjunto, o senhor administrador não tem de saber? – lembrou o cabo, em respeitoso reparo.
-
Tem, pois é... vai lá dizer-lhe, enquanto eu vou buscar um bom´4e, mas
se estiver a dormir deixa o recado à senhora ou ao mainato.
Entretanto, o numeroso grupo corria já em
direcção ao povoado. Iam dar a nova e preparar toda a gente para a
batida. Conhecedores dos caminhos secretos da mata densa, encurtavam
muito os cerca de quarenta quilómetros que, por estrada, os separava do
Lúrio.
O
Carlos não levava a Mauser, como os cipaios. Não simpatizava com aquela
espera-pouco de madeira, muito menos do seu coice demolidor. Só mais
tarde lhe viria a reconhecer vantagem. No momento, preferiu munir-se de
uma pequena pistola-metrelhadora FBP que o governo lhe havia
distribuído.
Já acomodado no jeep cinzento, o cabo e o
adjunto na cabina e os outros dois lá atrás, na caixa larga, passaram
pelo barracão do posto, para o abastecimento. Este barracão era um misto
de armazém e fábrica de curtumes, um casarão de troncos de umbila e
capim seco, onde, por entre tambores de gasóleo e outras mixórdias, se
espalhavam as peles que o administrador Barbosa, o grande senhor da
terra, ia coleccionando, sabe-se lá se para fazer jus à sua nobre
condição de herdeiro de Mouzinho...
Brilhantes as de jacaré, pardacentas as de
itata, muito valiosas seriam as de leopardo, mas as esteticamente mais
sugestivas eram as de zebra, pelo desenho artístico, a duas cores: a
preta, dos naturais, a branca, dos europeus. Num canto do armazém, com
as mãos sabujas de unguentos, o negro Majemba, químico de ocasião,
amanhava mais uma pele de lince que ía exalando um odor horripilante.
- Não podemos demorar! A esta hora já o Momola com a sua gente está a chegar ao Lúrio...
-
Ainda, senhor. Parece agora estão passar Monte Nivato, - resposta
pronta do Sanica, com um sorriso sabe-tudo nos lábios gretados pela
suruma, enquanto apertava a espingarda contra as cabedulas de caqui
branco, domingueiro.
O jipão rosnava forte na picada estreita,
cabrito da serra, de pedra em pedra. Estremecia, pulava, parava,
acelerava, que o piso de matope esburacado, ondulado, mais parecia o mar
encrespado ao largo de Matosinhos. Mas o Land-Rover era uma boa
traineira, concebida para sulcar aqueles caminhos improvisados na selva,
onde nunca haveriam de chegar os “pidacs” e os “feders” da CEE.
Surpreendente era, também, a resistência daqueles pneus a que nem mossa
faziam as mordeduras constantes de troncos salientes espreitando,
disfarçados, nos tufos de capim verde.
Uma viagem assim era um verdadeiro exercício
físico, ainda mais desgastante que viajar de Aveiro a Vouzela na velha
automotora da Linha do Vale do Vouga!...
- Ué, mocunha, já viu aquele macaco todo?! – e
o Sanica apontava, com as duas mãos espetadas na janela do carro, -
come a machamba toda!
A uma centena de metros, os mais brincalhões
habitantes da floresta, almoçavam lauto banquete: uma refeição gratuita,
servida pelo suor dos nativos que, e não só por isso, detestavam a
macacada.
O Carlos afrouxou e parou o carro, ensaiando
fortes aceleradelas, no intuito de os amedrontar. Os bichos olharam
curiosos e, depois de estudarem a situação, continuaram a ladroagem,
arrancando à terra, com primata avidez, enormes tarolos de mandioca que
devoravam sem cerimónia. Os mais velhos carregavam às costas pequenos
filhotes de pêlo azulado, tupilis reguilas, mas imaturos nos trabalhos
de pilhagem.
- Sanica, corre-os a tiro!
O cabo esfregou as mãos contentes, saiu da
cabina e... pum!.. o macaco mais corpulento tombou, de ventre para o ar,
lançando gemidos que confundiram o Carlos. Aquele choro aflitivo tinha
qualquer coisa de humano, de súplica desesperada.Com a
cabeça entre as patas, como que a rogar clemência, o bicho foi-se
virando, lentamente, até que sucumbiu, encostado a um ramo de mandioca.
Os outros, nem vê-los! Haviam fugido para as
árvores mais altas e frondosas, onde aguardariam, nervosamente, que os
primos inteligentes, mas bem mais maldosos, abalassem.
- Hoje já tens almoço, Sanica!
Este, com um trejeito comprometido, olhou de
novo para trás, para a caixa do jeep, onde imaginava já uma negra
caçarola bem cheia de saboroso caril de macaco, cozinhado com bastante
piri-piri...
- Vou também dar um bocado ao Iussufo e a
Jamú... – enquanto acenava com a cabeça na direcção dos dois cipaios que
viajavam de pé, na retaguarda, como que prestando honras fúnebres à
vítima ensanguentada do seu cabo.
Nem todos os nativos de Moçambique comiam
carne de macaco. Faziam-no os macúas, mas, mesmo no seio desta etnia, só
certos nihimos o incluíam no menú. Porque até na alimentação eram
diversos os costumes dos numerosos grupos étnicos daquele país. Como o
são, adiante-se, as suas crenças, dialectos, personalidade e anseios.
Nestes aspectos, Moçambique é uma autêntica manta de retalhos, em que só
o espírito de nação, que começa a despontar, e a língua portuguesa são
factores de união.
- Ainda falta muito?
-
Não, senhor. Depois do rio, além, é mais pouco-pouco -, e o Sanica
acompanhava a explicação com um abanar calculista da mão direita.
O sol quente, trémulo de fogo, trepava,
apressado e irreverente, pelas vastas escadas do horizonte, quando,
finalmente, atingiram o Lúrio. Era um rio pouco caudaloso, mas um
viajante longínquo, nascido lá para os contrafortes do Niassa: deixava,
ao passar, uma vegetação luxuriante a embelezar as margens sonhadoras...
Para o atravessar, o régulo Momola e a sua
gente, haviam, anos antes, lançado mãos da sua empírica engenharia
artesanal: compridos troncos de árvores, dispostos de uma lado ao outro
do rio, revestidos por esteira pacientemente urdida por mãos
habilidosas, de bambus entrelaçados.
Mas era precisa muita atenção ao efectuar a
travessia auto daquela ponte, pois fora idealizada e projectada bem à
maneira daquela gente: à medida da largura da viatura utilizada pelo
administrador, e nada mais...
Ao Carlos, novato naquelas travessias, mais
acostumado a travessuras, não ocorreu que urgia reduzir a velocidade,
para galgar sem problemas os primeiros troncos e... zás, o carro salta,
estrebucha, o capô abre-se, corta literalmente a visão... o jeep segue,
bate... e pára.
- Senhor, tem bom? – interrogam os olhos
arregalados do Sanica, fitando o Carlos como se ele acabasse de fugir
das amarras do purgatório.
- Não é nada! -,
olhando para os lados e para trás. À frente só via aquela chapa
cinzenta, barreira que lhe havia ocultado uns bons dez metros de ponte,
estreita, como já vimos.
E o jovem Carlos, com nervosismo
comprometido, acabou por se rir, quando perspectivou a frio a ridícula
cena que durou segundos e podia ter absorvido anos de vida.
Lá para trás, bem no meio da ponte, os dois
cipaios estavam ainda sentados, boca entreaberta, olhando, mudos, as
águas impávidas e serenas correndo lá no fundo, a uns bons trinta
metros. As suas armas estavam tombadas, em desalinho, na caixa da
viatura. E pensou, refeito do susto, como teria sido possível atravessar
toda a ponte daquela forma...
- Tens de perguntar ao Mussa como é que ele
traz o capô solto! Aquilo não se solta de qualquer maneira!-, como se
quisesse transferir para o pobre mecânico/desenrasca lá do posto, a sua
azelhice e inexperiência, ali tão evidente.
O
Sanica não respondeu e, quando ambos saíram do jeep, olharam ao mesmo
tempo para os duendes perdidos na floresta, interrogando-se qual deles
plantara aquele providencial jambire no azimute desvairado do carro!...
Se não fosse aquela amorosa árvore, esperava-os o abismo profundo, na
margem do rio...
Os dois cipaios cuspidos, ainda espantados,
atravessavam já o resto da ponte, aconchegando nas cabedulas assustadas,
as camisas desfraldadas pela queda livre a que se viram sujeitos.
- Vamos chovar o carro para trás! - , ordenava já o cabo aos dois cipaios. E chovaram...
Estavam, então, a uns escassos duzentos metros do povoado, onde por fim chegaram, aliviados.
O Carlos depressa esqueceu o acidente e
retomou o entusiasmo pela caça que, afinal, ali o levara. Tanto mais que
aquela multidão, como raramente vira, armada de zagaias, pontas de
lança, arcos, flechas, catanas, machados, tambores, latas e apitos, e
todo um sortilégio de instrumentos, lhe lembravam, com certa ironia, as
hordas de Viriato nas serranias da Estrela.
Mas, para além do costumeiro cumprimento, uma
vénia mal dobrada, aquela mole humana mantinha-se silenciosa, num
descampado dominado por quatro mangueiras ramalhudas, onde pontuavam já
frutos amadurados
O régulo Momola adiantou-se ao grupo,
juntando-se aos recém-chegados, acompanhado de mais três ou quatro
elementos, seus conselheiros tribais,, e um outro negro, ainda novo,
armado de caçadeira: era caçador privativo de um europeu de Namuno que,
casualmente, ali havia acampado e se dispusera a participar na caça ao
leão.
Formou-se, ali mesmo, um “conselho da
revolução” da caça, em que o Carlos desempenhou a cómoda função de
moderador. Reconhecia, intimamente, ser o menos credenciado para ditar
estratégias. Mas mostrou-se interessado e participativo e, sobretudo,
prestava especial atenção aos experientes alvitres que íam surgindo.
Estava ali, mais ou menos com a função do rei de Espanha: não governa,
mas é um símbolo...
O plano para caçar o leão não era assim tão
complicado! Consistia tão só em formar uma linha de nativos com os
instrumentos sonoros e armas rudimentares de um lado do hipotético
esconderijo da fera, enquanto os elementos com armas de fogo se
emboscavam nos previsíveis pontos de fuga.
É que o Rei da Selva incomodava-se perante um
ajuntamento grande e barulhento, habituado que estava à sua vida de
anacoreta da mata silenciosa. E era com passada pachorrenta, com
desprezo manifesto, que se virava, abanando a cauda, à arruaça que, do
género, se lhe deparasse.
- Está tudo bem, mas onde encontrar agora o bicharoco? – e o Carlos olhava interrogativo para os seus pares.
-
Nosso sabe, senhor, garramo tem além -, e o Momola apontava para a
encosta arborizada do planalto ao fundo, e rematava, decidido: - tem
junto do monte. Nossa gente leva lá...
- Vamos, então.
E o pequeno exército pôs-se em marcha pelos
carreiros das machambas de mapira alta, de campos de milho com maçarocas
douradas ao sol brilhante. Aqui e ali, iam ficando faixas rasteiras de
amendoim e, mais adiante, fartos cachos de banana marrouce, dependuradas
de troncos com larga folhagem.
Representava tudo o que ia vendo a base de
subsistência, da vida daquela gente, numa economia mista,
recolectora/produtora. Não era aquela, ainda, uma sociedade de consumo.
Era a vitalidade de uma terra forte, que ofertava os frutos na medida do
trabalho de cada um: quase sempre suficientes, sem excedentes, mas sem
graves faltas.
Aproximavam-se já do monte, em cujas fraldas,
de vegetação cerrada, estaria o refúgio do leão devorador. Mas nem o
Momola, nem ninguém da aldeia, sabia indicar ao certo o local, tão vasta
era a área.
- Vamos fazer a batida por bocados, Sanica?
A ideia era dividir toda a zona arborizada, entre a clareira e o monte, por faixas a bater.
Dividiu-se o pessoal: o da batida (a barulhaça) para um lado, os armados, para outro.
E a festa começou!
- Senhor adjunto, nós é melhor ficar ali. -, o
Sanica apontava para um morro de mochem, abrigo natural para a espera.
Os dois cipaios e o caçador foram-se, também, dispondo na zona.
Já o Carlos sentia um leve tremor do corpo,
uns arrepios gélidos em sol escaldante, mas que se iam diluindo na
azáfama. Tinha a impressão, sentia-o ao fitar os rostos excitados dos
outros, que com feras daquela estirpe não se brinca.
Fosse pelos nervos, fosse pela fome – estava
em jejum – o cara-pálida sentia um palpitar doloroso no estômago, quando
se acocorou numa pequena saliência do morro baixo.
Era quase meio-dia. Um silêncio sepulcral
dominava o ambiente. Nem um leve esvoaçar da passarada; nem o cair duma
folha seca; o rastejar furtivo de uma cobra ou a corrida elegante e
vaidosa de uma gazela!...
De repente, como o estropear da fúria louca
de uma manada de elefantes rasgando a selva, como o alarido raivoso de
mabecos em luta pela posse de um javali, a serra ecoa, o ar sacode-se.
Todos aqueles tambores rufando, latas chocalhando e os sonoros berros
das gargantas fortes dos nativos da batida, na outra orla da mata,
impressionavam mais que o sapatear raivoso do nosso Parlamento em dias
de polémica orçamental ou períodos eleitorais...
A selva tremia, o barulho aumentava, na justa
medida que os batedores íam cruzando a mata em direcção aos emboscados.
Só que já estavam bem perto, sem que o rei da selva aparecesse. Nenhum
disparo soara, até ao momento.
- Ei, Sanica, o gajo não está cá! – diz o
Carlos, quebrando a concentrada atenção do cabo, a focar a mata, rígido
que nem uma marmota congelada.
- Parece não está, senhor -, sem, contudo, retirar os olhos desorbitados do arvoredo.
E não estava, de facto, naquela faixa. Deu-se o encontro dos dois grupos e leão nem vê-lo!
Curiosamente, nem um coelho, uma gazela, um
javali, nenhum animal passara em frente dos emboscados. A esta
constatação do adjunto, observou o caçador, com segura convicção:
- Pois não tem outro bicho, porque leão está por perto. Nosso vai encontrar, já viu patada dele...
O Carlos ficou a saber que numa área
considerável em redor do palácio do rei leão, não havia lugar para
outros animais menores: os súbditos, amedrontados, fugiam perante a
presença ameaçadora do seu despótico amo.
E, a ser assim, nada estava perdido, tanto
mais que haviam fortes indícios apontando para a presença próxima do
devorador. Ía tentar-se a faixa seguinte.
E a operação repete-se.
Desta feita, à falta de outro abrigo, o
Sanica sugeriu ao Carlos uma árvore velha de melala bifurcada. Era este o
poleiro de espera para o mocunha, com a pele ardendo sob a inclemência
do sol dum fim de manhã. Por baixo, brilhavam as micas soltas duma
ribeira, seca naquela época do ano.
Enquanto esperava, de novo, ía pensando na
sua posição caricata, qual ave no choco e deu consigo a conspirar
surdamente contra o Sanica por lhe ter alvitrado aquele poleiro de
abutre medroso. O sacana do cabo pensaria que ele tinha medo?!...
Mas, intimamente, até se sentia bem
posicionado. Do pouco que sabia, os leões não voavam, ali não haveria
perigo. Mas não se desvaneceu de todo aquele tremor dos dedos...
A algazarra recomeçara, ao longe. De novo os
tambores, as latas, os apitos, os berros musicais do outro grupo, que se
ía aproximando.
De repente, bem ao lado, soa um tiro. O
Carlos, estendido num ramo, redobra de atenção, com a pistola
metralhadora bem aperrada, pronta a disparar...
Tac..., tac..., tac..., o coração batia-lhe
como cavalo em solto galope na pradaria. O suor aumentava-lhe no rosto, o
ar faltava-lhe nos pulmões, quando, mesmo por baixo, a uns escassos
três, quatro metros, na vertical, o nosso leão, com as patas enterradas
na areia, olhava pesadamente para um e outro lado da ribeira,
desconfiado. Ouvia-se nitidamente a densa respiração da fera, uma
bisarma medonha, grande, nutrida...
O Carlos agiu, então, como um autómato; o seu
consciente estava às portas do bloqueio, em presença de tão leonina
figura. Ensaiou uma duvidosa pontaria na direcção do monstro e disparou
uma rajada breve, sem se preocupar com a escolha dos pontos mais
vulneráveis; bastou-lhe divisar a massa enorme do bicho na mira e
carregar no gatilho.
Era difícil, quase impossível, não acertar, de cima para baixo, àquela distância!
Mas, ao contrário do que pressupunha, aquele
não tombou: soltou um urro arrepiante e empreendeu um salto descomunal,
embrenhando-se pelo capim alto.
E o nosso jovem manteve-se quieto, mudo e
surdo, por uns instantes. Veio-lhe, depois, um pensamento derrotista:
falhara..., e saltou da árvore. Na areia seca, nem um pingo de sangue. E
ia cogitando: mas era impossível não lhe ter acertado!...
Procurou o Sanica com os olhos, mas o cabo
não estava à vista e continuava a remoer no sucedido, quando troaram
dois tiros de caçadeira, mais além. Mas manteve-se no local.
- Senhor, já está! O gajo já morreu, tem ali..., o caçador Sacura encontrou caído lá... -, gritava o Sanica, entusiasmado.
- Encontrou caído?! Mas não foi ele que o matou com aqueles dois tiros? – interrogou o Carlos, já bem mais animado.
-
Não, não senhor, - voltou o cabo, - o gajo já estava sofrer p’ra
morrer, com tiros do senhor adjunto. Sacura deu tiros para segurar ele,
que leão ferido fica perigoso mesmo...
Começou a desvanecer-se aquela sensação amarga do fracasso. Afinal, acertara-lhe!
Quando
chegou, com o cabo, junto do animal moribundo, o Sacura fez questão de
lhe mostrar os três pequenos furos com que o Carlos o havia atingido na
espádua. Só que, como aquele continuou a explicar, aquela zona do corpo é
dura, não dá para matar logo, com balas de 9 mm. Ele, sim, atirara como
um bom caçador: bem na cabeça do gigante..., os zagalotes
desfizeram-lhe o focinho...
Mas já um verdadeiro festim começara.
Uns cantavam, outros dançavam, fez-se batuque
com o rufar dos tambores; vieram mamanas, vieram catraios, um mar de
gente em delírio fez círculo em volta do odioso assassino.
O Carlos sentia-se baboso com tanta e
espontânea lisonja, tanto kuerine, tantos beijos de ousada gratidão que
as moçoilas lhe iam depositando na face!
Bem real, era para aquela gente o fim de um
pesadelo e, também, o vingar dos seus mortos; o castigo do criminoso
ditado por um código penal que de pimentel nada tinha...
E a festa continuou ali mesmo, agora com um
estranho ritual, nunca visto: toda aquela gente alinhou em fila e, um a
um, ao som de afinado cântico, foram espetando uma lança, passada de mão
em mão, na cabeça da fera assassina.
Já eram quatro da tarde daquele agitado
domingo quando o cadáver, após ter sido arrastado até à aldeia, foi
carregado, por uma dezena de braços fortes, na caixa do jipão. Era o
regresso. Antes, porém, ainda no povoado, fora o almoço: frango à
cafreal com xima e sumo de caju não faltaram, que toda a gente se
dispunha a presentear quem, a seus olhos, eram os seus salvadores. Para o
Carlos, apesar dos insistentes protestos, ia uma cangarra de galinhas e
um cacho de bananas. Eram pessoas generosas na sua pobreza, gratas na
sua humildade, os macúas.
- Senhor, eu pode
ir? – perguntou o régulo Momola, rodeado pelo seu povo. – Vai dar-me um
pouco de xicuembo? Referia-se à gordura que reveste os intestinos do
leão.
Entre os macúas e até de parte da colónia de
indianos e europeus, era convicção ser aquela gordura um excelente
remédio para o reumatismo e até muitas doenças do foro íntimo, como a
impotência.
- Mas o leão é vosso! Podem fazer dele o que quiserem!...
-
Não, senhor é dono de leão. Quem mata é dono, pode fazer o que quiser
dele, - interveio o Sanica, para dar a conhecer mais um dos costumes
ancestrais dos nativos.
Já o motor do jeep roncava alegre, de novo na
picada. Desta feita, com mais cuidado, não fosse, mais uma vez, a ponte
tecê-las...
Chegaram tarde ao largo do posto. Já os
miúdos da missão, em visita à sede administrativa, brincavam
chilreantes, após o arrear da bandeira.
O administrador, sentado com a mulher e filhos à sobra duma frondosa bugambília, dirigiu-se-lhes apressado e interrogativo.
-Então, Carlos, que tal a caçada? Já estava
preocupado com tanta demora! Oh, mas que grande bicho!... – largou,
estupefacto, ao debruçar-se no bordo da viatura. - É um grande bicho!
Surgem as explicações de toda a ordem; o onde, quando, como e porquê; dão-se parabéns, vai chegando mais gente, curiosa.
A notícia corre célere e aparecem, também, os
europeus da terra: o Fonseca da cantina e a mulher, o Carvalho do
algodão e as filhas, e pessoal do aquartelamento militar, que apenas ali
se encontrava aquartelado por questões de quadrícula, pois não havia
qualquer conflito latente na região.
Todos se encontravam ali mais empenhados em registar na película a sua momentânea comunhão com o senhor da selva.
Os de camuflado não deixariam de enviar uma foto de ocasião às suas madrinhas de guerra, saudosas, em Portugal.
E durou horas aquela peregrinação
fotográfica, a quebrar a monotonia sertaneja dos pacatos dias de Balama,
enquanto o administrador Barbosa ía passando o tempo a lamentar o
exagerado esburacar da pele, que a deixava pouco fiável para a sua
desmesurada colecção de curtumes, na salgadeira do armazém.
Quanto ao Carlos, esse tivera direito a
algumas duras unhas de leão. Se para mais não servissem, ajudá-lo-iam a
esgadanhar nos escolhos que se lhe foram deparando na encruzilhada da
vida.
Por longos anos, se foi falando no norte de Moçambique do tristemente célebre “leão dos 16”.
Mas, triste sorte, negro fado o daqueles
macúas, pois antes, então e depois, foram sempre vítimas de leões, se
calhar mais carniceiros que aqueles, com jubas de todas as matizes... E
dessas feras, nem Carlos, nem Sanicas, nem Sacuras os puderam livrar...
Quanto ao autor, tendo passado ao papel este
seu conto já lá vai mais de uma dezena de anos, só agora ganhou coragem
para o compartilhar, mais por temor àqueles cartazes que se vão vendo em
alguns estabelecimentos de venda de armas: “Aqui se juntam caçadores,
pescadores, advogados... e outros aldrabões”.
Mas vale a pena correr o risco, suplantado
pelo testemunho do maravilhoso fascínio das terras moçambicanas, na sua
original e genuína natureza!
- Francisco José Branquinho de Almeida - 1978.