
Eu, abaixo assinado, declaro, e comunico à Nação, sob compromisso de honra, que não tenho nos meus bolsos, nos meus Bancos, em prédios, ou em offshore, os milhões de que os investigadores do Caso Freeport se diz terem perdido o rasto.
Zé Povinho
… e ajudem-se uns aos outros!
Foi uma das últimas frases de António Feio, quando já se desligavam no corpo os últimos fios de vida.
António Feio nasceu em Lourenço Marques, actual Maputo, Moçambique, em 6 de Dezembro de 1954. Popular actor de Teatro, onde se destacou pelo seu humor e profissionalismo, viria a ser, já no período em que lutava contra a implacável doença , condecorado com a Ordem do Infante D. Henrique.
Para além da sua coragem e força admiráveis, de que nos deu exemplo no último ano e meio, apagaram-se para este grande homem e artista, que nos dizia que o Teatro era uma festa, as últimas luzes da ribalta, nos seus 55 anos de vida.
Deixa-nos, para além da admiração que soube conquistar no seu vasto público, frases que bem merecem ficarem vivas e reflectidas por quantos o admiravam:
“A vida é uma passagem muito rápida. Há que aproveitar bem o tempo”
“Aproveitem a vida e ajudem-se uns aos outros”
“Não deixem nada por dizer nem nada por fazer”
Deixou um desejo por cumprir, levar os seus filhos a Moçambique, a terra em que nasceu .
Que repouse em Paz!
Escrevi este “conto” em Setembro de 1975.
O reduzido afastamento temporal dos factos narrados implicou um reviver de situações que passaram ao papel como quadro fresco, com as pinceladas de ficção mínimas. Admito mesmo que Hoje, este conto teria outros cambiantes, ou não passaria mesmo da memória do autor.
Sem qualquer pretensão literária, reproduzo-o agora, em humilde dedicatória e com o pensamento nos que, de alguma forma, viveram ou se revêem nas situações narradas, em especial naqueles a quem a má fortuna não permitiu lerem estas linhas.... (Falta, apenas,pedir desculpa por algumas gralhas e pela pouco cuidada configuração do texto)
1971. Moçambique/Norte. Manhã de cacimbo fresco. Folhas de cajueiro velho, perdido na mata, choram gotas de orvalho na picada estreita de matope enrijecido pelas tardes quentes. Perto, aves sinistras lançam, a espaços, silvos irritantes por entre centenários embondeiros.
Nada mais se ouvia ao redor. A noite acabava fria, silenciosa e calma, não fora uma gazela atrevida infiltrar-se, em desenfreada correria, cortando o círculo, por entre as três dezenas de fardas negras que, em alvoroço, viram o seu fraco repouso interrompido, num bater de coração mais forte, num aperrar de armas tão nervoso quanto inesperado.
Era um novo dia que rompia, um novo dia que até nem contava. Era só mais uma data, apenas, para rapazes já homens, a quem o dever não permitia calendário de vida. O de morte também podia servir para a contagem indiferente de uma manhã que surge numa floresta sem horizonte.
O Comando havia sido claro na ordem que transmitira. Aquele grupo de homens, fracção duma força de combate estacionada algures no Norte de Moçambique, teria por missão interceptar um grupo inimigo, fortemente armado, que dias antes atacara e saqueara um aldeamento de nativos. O resto era com eles. A zona conheciam-na bem, os perigos não contavam e o medo não era o melhor conselheiro para quem queria conservar a “pele” naquela guerra traiçoeira onde, por vezes, era imperioso “dar” primeiro.
O alferes Carrilho que, com dois furriéis e enfermeiro eram os únicos europeus entre homens de rostos bronzeados, nados junto ao Índico, dava as últimas instruções ao grupo, antes da partida para o terceiro dia de marcha. Os sacos de campanha, acomodados sobre as fardas húmidas e sujas, haviam já sido aliviados de algumas latas de conserva de porco, gordurosas, que só o negro Manjate, fruto recente das Missões cristãs, comia. Os outros, por Alá, nem cheirá-las...
Mais leves, olhos já lavados no orvalho do capim alto, em fila espaçada, aproximavam-se já dum trilho batido, detectado na véspera pelo pisteiro Capoca, um recuperado à Frelimo, a que nada escapava. Por isso, lhe chamavam “o Perdigueiro”.
Ali mesmo fora decidido montar a emboscada. O inimigo, com o saque e elementos da população raptados, poderia escolher aquele itinerário para a retirada mais para norte, para recônditos e mais seguros refúgios, em região onde se pensava estar implantada a Base Manica.
E, quando os cortantes raios de sol tropical já rasgavam as copas frondosas do arvoredo, os homens de negro, espalhados por entre os arbustos, aguardavam silenciosos. Esperavam na incerteza....mas esperavam. Afinal, aquela até era uma guerra de espera.....espera de um final que tardava em acontecer e o último capítulo daquela rude aventura de anos era uma assustadora incógnita....
O silêncio doía muito! Aquele “silêncio” era duro! Via-se no rosto do comandante. Ele próprio preferia gritar bem alto. Ouvir o eco da sua voz lançado pelos rochedos soltos.
Queria gritar que não queria a guerra, mas que não tinha medo. Talvez para assustar esse mesmo medo. Queria não pensar em nada, automatizar-se, mas aquele marasmo de silêncio, que já durava horas, punha-lhe o cérebro mais desafinado que a barulhenta fanfarra do Batalhão.
Nada mais aconteceu naquele dia que desse outra cor àquele quadro vivo de corações enervados.
Com o cair da tarde, o alferes incumbe o Ferreirinha, um baixinho furriel europeu, quase no fim da comissão, da retirada para pernoita. Impunham-se cuidados especiais neste “mudar de sítio”: o local onde haviam pernoitado na véspora não servia. Nem em tal pensar! “Por o periquito nunca mudar de ninho é que lhe roubam os filhos”, dizia o Ubisse, um homenzarrão negro que não largava a metralhadora mais pesada do quartel.
E foi afastado da zona, o novo local de pernoita que, afinal, não era diferente: as mesmas árvores, o mesmo pouco céu, a mesma terra seca, os mesmos pássaros e, até, os mesmos semblantes sofridos do pessoal.
- Meu alferes, isto já não dá nada! Quase não há ração, a água é pouca e os “turras” já passaram por outro lado!
Este era o estribilho do enfermeiro Correia, um dos poucos europeus do grupo. Estribilho que, mais uma vez, ensaiou aos ouvidos do Carrilho, já habituados aos alvitres conselheiros do cola-adesivos lá da malta.
E, quando o alferes lhe retorquiu não se poder retirar sem a certeza de que o inimigo havia passado para norte, lá foi o Correia, coçando o barrete salpicado de mercúrio, embrulhar-se por entre as ligaduras e bebericar a água a que ele, para desinfectar, dizia, juntava álcool. Só que o mordaz Sacura afiançava que o Posto de Socorros estava quase todo na barriga do Correia!....
nova espera. De novo o silêncio, de novo a quietude ansiosa de outra emboscada junto
ao trilho adversário.
- - Isto é demais, meu alferes! Que se lixem os turras! Já nem água tenho,- quando é que
is isto acaba? –sussurrava interrogativo o furriel Bazuca, um - minhoto novato, dois meses
a antes largado pelo Niassa naquelas longínquas paragens.
- - Estabelece ligação rádio com o Comando, que eu quero falar com os gajos! – balbuciou o Carrilho, também já preocupado com aquela situação nada agradável.
E foi de abatimento o encolher de ombros agitado e discordante do grupo, quando se
espalhou a resposta do oficial de operações.
- Porra, mas quando é que a malta atinge o Rio Montepuez? Em vez de irmos para o Messalo onde eles se acoitam, vamos para sul? E se
não encontrarmos água até lá? E o que vamos comer amanhã se a ração está a acabar?
Ninguém respondeu ao Correia, de novo a espalhar pessimismo, qual Velho do Restelo
das selvas africanas.
Mas a ordem era para cumprir, estava acima de qualquer desabafo, era superior
a qualquer dúvida ou rezinguice do pessoal. E, bem no íntimo, eles tinham a noção disso, mas aquelas “bocas” descontraíam e davam as energias que iam faltando.
Estava prometido o abastecimento hélio para a tarde do outro dia. Viriam mais umas
caixas de alimentação pré fabricada.... A água, só por sorte se encontraria, a não ser
quando atingissem o rio, para sul, razoavelmente caudaloso e onde, na anterior operação, o
Capoca havia colhido um bom Kg de camarão. Ricos rios que até camarão davam!
A malta até se imaginava os balcões da Portugália.....
A progressão era lenta, por perigosa.
Por vezes, a indicação do “cinco” da frente,
periodicamente rendido, o grupo abria em linha,
metade para cada lado do trilho
inimigo que seguiam, não fosse uma rajadas
traiçoeiras, por detrás de um tufo de
vegetação mais denso ou de uns rochedos
soltos, surpreendê-los. Para triste e doloroso exemplo
chegara o que, dias antes,
acontecera ao alferes Marques, um jovem quase formado em Medicina,
que se vira privado da perna direita, quase esfacelada.
Este tipo de avanço era difícil, mas necessário, e retardava um pouco o andamento que,
em tais circunstâncias, não chegava aos dois Km por hora.
Eram já duas da tarde. O sol, na vertical, jorrava vagas de calor inclemente sobre os corpos
suados. O Ferreirinha largava imprecações minuto a minuto, quando uma aborrecida
micose lhe ardia ao roçar as calças de caqui.....e o sacana do Correia só levava mixórdias...
.acusava o furriel.
De repente, tudo pára. Num movimento sincronizado, qual grupo de bailado rítmico em
estreia no Olímpia, todos se deitam, sem ruído, indicador a tremelicar, hesitante, junto ao
gatilho. Mas não soaram tiros. O passa-palavra chegou depressa aos últimos homens que, já levantados, sorriam: uma jibóia, que mais parecia o tronco de uma umbila, atravessara-se
no trilho, pachorrenta e indiferente a tantas espingardas.
- Eu sabia que ela estava aqui, meu alferes! O gajo deve ir ferido, porque eu atirei-lhe
- O artista vai mesmo ferido, - dizia o ferreirinha, ao inspeccionar a semi-automática com umas gotas de sangue ainda fresco, ao longo da bandoleira de caqui.
- E porquê tanta demora a responderem? - interrogou o Carrilho, fitando o velho cabo negro, que fora caçador de elefantes lá para as serras do Niassa.
Não houveram baixas nos fardas pretas. Apenas uma camisa furada e um ligeiro arranhão nas costas do Amisse, onde o Correia já colocara mais um adesivo.
Para o Carrilho, que não deixando de respeitar, no essencial, as ordens que recebia, valia bem mais o seu objectivo pessoal e o melhor que se podia conseguir daquela missão era subtrair do controlo do inimigo os elementos da população por ele raptados no aldeamento e que, segundo indicação rádio, rondavam as 20 pessoas. Ele sabia que aquela gente não ia de vontade. Conhecia bem a realidade macua. Se fosse da sua vontade, oportunidades para se juntarem aos guerrilheiros da Frelimo não lhes faltavam, atendendo ao isolamento da aldeia, onde se dedicavam ao cultivo de produtos para sua subsistência e de rendimento, como o algodão e o caju. Os macuas eram pacíficos, queriam paz e não se deixavam aliciar pelos insistentes convites dos “mabandidos”, como então chamavam aos guerrilheiros.
No emaranhado de sentimentos que assaltavam os seus camaradas, ainda não viera à superfície a dor profunda que os dominou, largo tempo, no perder dum companheiro de armas....
A muito custo, depois de lhes lançar o ultimato de que pediria para abandonar o G.E. logo que chegassem ao Quartel, caso a recusa de transportar o “turra” ferido, lá o foram carregando, contrariados e vociferando impropérios contra o frelimo que, afinal, era tão só mais uma vítima de guerra, de que pouca culpa também teria. E que, mais do que trazer no peito a ânsia de independência, mais não era do que um joguete de interesses internacionalistas e dos jogos de poder de altas potências.
FIM.