Iniciar

Para iniciar esta Página, faça um clic na foto.
Navegue....e mergulhe, está num rio de águas límpidas!

domingo, 20 de março de 2011

Confessionário juvenil


Tímido, mas rebelde, educado, mas com um feitio muito especial, era a moldura comportamental que os familiares mais chegados faziam do Carlos. A eles estava confiado pelos pais que faziam pela vida no Moçambique distante, para que pudesse continuar o percurso escolar.

Páscoa de 1965.
Frequentava, desde a sua inauguração, já se esfumavam três longos anos, O Colégio de S. Frei Gil, na acolhedora Vila de Vouzela.
Tendo passado os primeiros anos escolares, depois de uma breve passagem pelo S. Tomás de Aquino, na vizinha vila de S. Pedro do Sul, num colégio de Viseu, em regime de internato, onde foi colega de carteira do falecido Acácio Barreiros, estava naquele ano a braços com o antigo 5º ano, com as suas duas tradicionais secções, a de Letras e a de Ciências.
Se, no 3º e 4º anos, residira com seus tios, que desenvolviam a sua actividade profissional naquela vila, neste último ano, vivia como hóspede numa pensão local, em certa medida, entregue a si próprio.
O primeiro acto de rebeldia(?) já ocorrera no ano escolar anterior, quando, em plena aula de Físico-Química, e após se sentir humilhado perante os colegas por um professor acabdo de chegar da "Sintra da Beira", por desconhecer uma fórmula, lhe respondeu que a falha não era sua, mas da forma pouco didáctica de ensinar, bem em contraste com o anterior professor da disciplina, uma figura vouzelense por quem o Carlos sempre nutriu o maior apreço.
Suspenso por alguns dias da frequência colegial, o Carlos só foi readmitido após se sujeitar, em plena aula, e na presença de toda a Direcção e de toda a turma (mista), a um acto de contrição e um pedido de desculpas a professores e colegas.
Fê-lo, envergonhado e triste, mas não se desvaneceu a ideia que havia formulado, frontalmente, daquele professor...
Naquele ano da Graça de 1965, no final do 2º Período, eram cruciais as "notas" atribuídas, mormente para seleccionar os alunos que seriam submetidos a exame final no Liceu Nacional de Viseu.
Não muito confiante na de Ciências, em que a Matemática era um quebra-cabeças, um pesadelo constante e desprezível, sobretudo para um cábula militante, já em Letras sentia-se nos seus domínios. Português e História, para lá do Francês, haviam sido, desde sempre, as matérias da sua eleição pessoal.
Leccionava História, por aquele tempo, um padre que, para além de mestre, era sacerdote numa paróquia do Concelho e que, vá-se lá saber porquê, era o alvo preferido do humor juvenil num Jornal de Parede, que um grupo de alunos, em que o Carlos se incluía, manuscrevia e afixava com regularidade mensal.
Num determinado dia deste 2º Período, o padre Xico entendeu dividir a turma em dois grupos, o dos, no seu entendimento, "sabichões" e outro de "limitados", no domínio do Passado. E consubstanciou esse seu desígnio com a apresentação de dois testes diferentes, de dificuldade adaptada aos grupos por ele criados.
O Carlos revelou-se, em voz alta, contra aquela decisão. Tendo-o feito, inicialmente, de modo curial, tentando que repensasse a sua decisão, pela forma injusta como se propunha avaliar uma mesma turma. Não o conseguindo demover, e disso se penitencia, angariou o apoio de alguns colegas para a "causa", a quase totalidade do pseudo grupo dos "sabichões", à excepção de um ou outro que "roeram a corda", de não responderem àquele teste.
As folhas ficaram em branco, apenas com a identidade e assinatura e em branco ficaram os que com ele ousaram manifestar a sua indignação : ZERO!....com tinta dum vermelho vivo.....e sublinhado!....
Terminadas as aulas do Período, lá correu, curioso, para saber das suas médias. E a pauta não enganava: o Carlos tinha uma negativa a História! Logo a História, uma das suas preferidas e a disciplina que, em todo o percurso escolar, inclusive, com este professor, lhe conferira sempre as médias mais elevadas!...
Toldou-se-lhe a vista quando olhou a pauta, e remoía em silêncio, quando alguém o chamou à Secretaria do Colégio para atender uma chamada telefónica de sua irmã, como ele, aluna daquele estabelecimento de ensino, a frequentar o 4º Ano. Depois de lhe satisfazer as questões formuladas, informando-a das suas "notas", aquela interrogou-o a propósito das suas próprias médias. Ainda com a adrenalina a fervilhar-lhe nas veias, respondeu-lhe, literalmente "O FDP(com as letras todas) do padre de História deu-me negativa!". E o telefonema acabou aí!...
Saiu da Secretaria, onde apenas se encontravam o continuo- de quem ele sabia não colher muitas simpatias pessoais -, e um comerciante local, a tratar de assuntos do seu ofício. Saiu, aborrecido, mas despreocupado por estar longe de imaginar que uma conversa privada, com um privado desabafo telefónico, seria alvo das "escutas" de um par daqueles quatro orelhões presentes na Secretaria, que se prestaria à "bufice", prática de uso corrente naqueles tempos idos.
Mas...foi assim! Soube-o quando, dois ou três dias depois, foi confrontado, sem que lhe fosse concedida qualquer explicação ou defesa, com a inexorável decisão do então Director do Colégio, também ele padre: EXPULSO!
A notícia espalhou-se, deturparam-se os factos....que teria ofendido o padre , professor de História, cara-a-cara....que o teria ameaçado fisicamente....e outras novelas de sacristia, bem à feição da época. Quando o Carlos, o "proscrito", sabia que tudo se passara de outra forma e sem que, depois das notas afixadas, estivesse alguma vez frente a frente com aquele docente!...
O pior, o ainda mais doloroso, veio depois: tendo decidido prepara-se, por si próprio e sem qualquer ajuda e submeter-se ao exame final de Letras, continuou a viver na Vila de Vouzela e na pensão onde estava hospedado. Foi, então, que sentiu o ferrete, o maior dos castigos. Se uma parte dos seus antigos colegas se manteve solidário, se mostrava condoída com a situação e não regateou a amizade e o companheirismo de sempre, outra, não menos significativa, não disfarçou a "repulsa" pelo "crime" cometido. E se manteve, sempre, os primeiros num lugar especial do seu espírito, com dificuldade superou a mágoa de ver companheiros e amigos mudarem de passeio quando com ele se cruzavam, ou fixarem os olhos no chão, quando o "proscrito" se aproximava.....
Tudo foi intimamente perdoado, mas difícil é de esquecer, por repugnante, ontem, hoje e amanhã, o acto de devassa duma conversa telefónica entre dois familiares e que redundou no castigo máximo, com agravo pessoal, pela santa inquisição colegial!
Mas conseguiu! Quando proposto - a título particular -, ao exame de Letras no Liceu de Viseu, obteve a Português e a História (em especial, nesta última), classificação superior a todos os alunos que se mantiveram no S. Frei Gil a receberem ensinamentos até final do ano escolar. Não se sentiu "vingado" dos seus colegas, sentiu, sim, que dava uma resposta à intolerância e à injustiça de que se sentira vítima...