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quarta-feira, 16 de outubro de 2024

CONO ARQUIVADO (III)

III

 O Carlos não levava a Mauser, como os cipaios. Não simpatizava com aquela espera-pouco de madeira, muito menos do seu coice demolidor. Só mais tarde lhe viria a reconhecer vantagem. No momento, preferiu munir-se de uma pequena pistola-metrelhadora FBP que o governo lhe havia distribuído.


Já acomodado no jeep cinzento, o cabo e o adjunto na cabina e os outros dois lá atrás, na caixa larga, passaram pelo barracão do posto, para o abastecimento. Este barracão era um misto de armazém e fábrica de curtumes, um casarão de troncos de umbila e capim seco, onde, por entre tambores de gasóleo e outras mixórdias, se espalhavam as peles que o administrador Barbosa, o grande senhor da terra, ia coleccionando, sabe-se lá se para fazer jus à sua nobre condição de herdeiro de Mouzinho...

Brilhantes as de jacaré, pardacentas as de itata, muito valiosas seriam as de leopardo, mas as esteticamente mais sugestivas eram as de zebra, pelo desenho artístico, a duas cores: a preta, dos naturais, a branca, dos europeus. Num canto do armazém, com as mãos sabujas de unguentos, o negro Majemba, químico de ocasião, amanhava mais uma pele de lince que ía exalando um odor horripilante.

- Não podemos demorar! A esta hora já o Momola com a sua gente está a chegar ao Lúrio...
- Ainda, senhor. Parece agora estão passar Monte Nivato, - resposta pronta do Sanica, com um sorriso sabe-tudo nos lábios gretados pela suruma, enquanto apertava a espingarda contra as cabedulas de caqui branco, domingueiro.

O jipão rosnava forte na picada estreita, cabrito da serra, de pedra em pedra. Estremecia, pulava, parava, acelerava, que o piso de matope esburacado, ondulado, mais parecia o mar encrespado ao largo de Matosinhos. Mas o Land-Rover era uma boa traineira, concebida para sulcar aqueles caminhos improvisados na selva, onde nunca haveriam de chegar os “pidacs” e os “feders” da CEE. Surpreendente era, também, a resistência daqueles pneus a que nem mossa faziam as mordeduras constantes de troncos salientes espreitando, disfarçados, nos tufos de capim verde.

Uma viagem assim era um verdadeiro exercício físico, ainda mais desgastante que viajar de Aveiro a Vouzela na velha automotora da Linha do Vale do Vouga!...

- Ué, mocunha, já viu aquele macaco todo?! – e o Sanica apontava, com as duas mãos espetadas na janela do carro, - come a machamba toda!

A uma centena de metros, os mais brincalhões habitantes da floresta, almoçavam lauto banquete: uma refeição gratuita, servida pelo suor dos nativos que, e não só por isso, detestavam a macacada.

O Carlos afrouxou e parou o carro, ensaiando fortes aceleradelas, no intuito de os amedrontar. Os bichos olharam curiosos e, depois de estudarem a situação, continuaram a ladroagem, arrancando à terra, com primata avidez, enormes tarolos de mandioca que devoravam sem cerimónia. Os mais velhos carregavam às costas pequenos filhotes de pêlo azulado, tupilis reguilas, mas imaturos nos trabalhos de pilhagem.

- Sanica, corre-os a tiro!

O cabo esfregou as mãos contentes, saiu da cabina e... pum!.. o macaco mais corpulento tombou, de ventre para o ar, lançando gemidos que confundiram o Carlos. Aquele choro aflitivo tinha qualquer coisa de humano, de súplica desesperada.Com a cabeça entre as patas, como que a rogar clemência, o bicho foi-se virando, lentamente, até que sucumbiu, encostado a um ramo de mandioca.

Os outros, nem vê-los! Haviam fugido para as árvores mais altas e frondosas, onde aguardariam, nervosamente, que os primos inteligentes, mas bem mais maldosos, abalassem.

- Hoje já tens almoço, Sanica!

Este, com um trejeito comprometido, olhou de novo para trás, para a caixa do jeep, onde imaginava já uma negra caçarola bem cheia de saboroso caril de macaco, cozinhado com bastante piri-piri...

- Vou também dar um bocado ao Iussufo e a Jamú... – enquanto acenava com a cabeça na direcção dos dois cipaios que viajavam de pé, na retaguarda, como que prestando honras fúnebres à vítima ensanguentada do seu cabo.

Nem todos os nativos de Moçambique comiam carne de macaco. Faziam-no os macúas, mas, mesmo no seio desta etnia, só certos nihimos o incluíam no menú. Porque até na alimentação eram diversos os costumes dos numerosos grupos étnicos daquele país. Como o são, adiante-se, as suas crenças, dialectos, personalidade e anseios. Nestes aspectos, Moçambique é uma autêntica manta de retalhos, em que só o espírito de nação, que começa a despontar, e a língua portuguesa são factores de união.

- Ainda falta muito?
- Não, senhor. Depois do rio, além, é mais pouco-pouco -, e o Sanica acompanhava a explicação com um abanar calculista da mão direita.