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quarta-feira, 16 de outubro de 2024

CONTO ARQUIVADO (I)

 I

Amanheceu depressa aquele Domingo de Outubro, 1967.

No largo do Posto, mal o sol espreitou, bochechudo, por entre os cajueiros da mata, sentavam-se velhos negros, encolhidos nas capulanas de caqui barato. Esperavam, em triste paciência, carpindo para os cipaios madrugadores todas as desventuras da sua noite mal dormida.

- Senhor, tem ali gente com milando grande! – anunciava, solene, no seu jeito sério, o Cabo Sanica, chefe incontestado dos cipaios administrativos da região.

O Carlos, ensonado, digerindo uma agitada sessão de king, levantou a esteira da janela baixa e lançou um “já vou” em contrariado bocejo. E o Sanica, depois de uns desajeitados salameleques, foi regressando para junto do grupo.

O Carlos era um jovem de 19 anos. Viera, havia pouco mais de um ano, das serranias beirãs para aquele sertão africano fascinante e medonho, belo e arrepiante; caixa grande de mistérios que, sonhador, se propusera desvendar. E os negros da área achavam graça àquele “menino branco” idealista, ao seu espírito aventureiro e despreocupado, qual fruto verde em chão maduro!... Mas, talvez por isso, representava a seus olhos a rampa de lançamento, através da qual faziam chegar até ao Administrador de Balama a sua nave recheada de lamentações, pedidos e mal disfarçadas exigências.

O Administrador era já pessoa idosa, vestuta, que eles não ousavam incomodar, talvez por respeito às barbas majestosas implantadas numa carranca sisuda. Era um cabo verdiano letrado, da Ilha de S. Vicente, branco ou crioulo oxigenado, e chefe duma interessante família, pessoas de educação esmerada.

Quando o Carlos, ainda esfregando os olhos, foi ao encontro do ajuntamento, por entre um interminável coro de salamas, viu naqueles rostos de ébano um problema maior, bem diferente das choramingas questões a que já o haviam habituado.

- Então o que se passa? O içar da bandeira é só às oito horas e vocês vêm para aqui tão cedo? – perguntou, em tom de graça para desenferrujar a língua muda do régulo Momola, um bondoso preto de carapinha grisalha, ancião influente, guia espiritual duma população e duma área mais vasta que todo o Alentejo; era admirado pela sua sabedoria e pela verdade com que manifestava os anseios do seu povo, de que era mandatário de linhagem.

- Tem garramo muito mau, senhor adjunto, está comer nosso povo!... nosso pede ajuda, está sofrer muito..., e continuava a explicar-se o melhor que sabia, no seu português estudado na universidade das suas velhas rugas.
(continua)