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quarta-feira, 16 de outubro de 2024

CONTO ARQUIVADO (IV)

 IV

O sol quente, trémulo de fogo, trepava, apressado e irreverente, pelas vastas escadas do horizonte, quando, finalmente, atingiram o Lúrio. Era um rio pouco caudaloso, mas um viajante longínquo, nascido lá para os contrafortes do Niassa: deixava, ao passar, uma vegetação luxuriante a embelezar as margens sonhadoras...

Para o atravessar, o régulo Momola e a sua gente, haviam, anos antes, lançado mãos da sua empírica engenharia artesanal: compridos troncos de árvores, dispostos de uma lado ao outro do rio, revestidos por esteira pacientemente urdida por mãos habilidosas, de bambus entrelaçados.

Mas era precisa muita atenção ao efectuar a travessia auto daquela ponte, pois fora idealizada e projectada bem à maneira daquela gente: à medida da largura da viatura utilizada pelo administrador, e nada mais...

Ao Carlos, novato naquelas travessias, mais acostumado a travessuras, não ocorreu que urgia reduzir a velocidade, para galgar sem problemas os primeiros troncos e... zás, o carro salta, estrebucha, o capô abre-se, corta literalmente a visão... o jeep segue, bate... e pára.

- Senhor, tem bom? – interrogam os olhos arregalados do Sanica, fitando o Carlos como se ele acabasse de fugir das amarras do purgatório.
- Não é nada! -, olhando para os lados e para trás. À frente só via aquela chapa cinzenta, barreira que lhe havia ocultado uns bons dez metros de ponte, estreita, como já vimos.

E o jovem Carlos, com nervosismo comprometido, acabou por se rir, quando perspectivou a frio a ridícula cena que durou segundos e podia ter absorvido anos de vida.

Lá para trás, bem no meio da ponte, os dois cipaios estavam ainda sentados, boca entreaberta, olhando, mudos, as águas impávidas e serenas correndo lá no fundo, a uns bons trinta metros. As suas armas estavam tombadas, em desalinho, na caixa da viatura. E pensou, refeito do susto, como teria sido possível atravessar toda a ponte daquela forma...

- Tens de perguntar ao Mussa como é que ele traz o capô solto! Aquilo não se solta de qualquer maneira!-, como se quisesse transferir para o pobre mecânico/desenrasca lá do posto, a sua azelhice e inexperiência, ali tão evidente.

O Sanica não respondeu e, quando ambos saíram do jeep, olharam ao mesmo tempo para os duendes perdidos na floresta, interrogando-se qual deles plantara aquele providencial jambire no azimute desvairado do carro!... Se não fosse aquela amorosa árvore, esperava-os o abismo profundo, na margem do rio...

Os dois cipaios cuspidos, ainda espantados, atravessavam já o resto da ponte, aconchegando nas cabedulas assustadas, as camisas desfraldadas pela queda livre a que se viram sujeitos.

- Vamos chovar o carro para trás! - , ordenava já o cabo aos dois cipaios. E chovaram...

Estavam, então, a uns escassos duzentos metros do povoado, onde por fim chegaram, aliviados.

O Carlos depressa esqueceu o acidente e retomou o entusiasmo pela caça que, afinal, ali o levara. Tanto mais que aquela multidão, como raramente vira, armada de zagaias, pontas de lança, arcos, flechas, catanas, machados, tambores, latas e apitos, e todo um sortilégio de instrumentos, lhe lembravam, com certa ironia, as hordas de Viriato nas serranias da Estrela.

Mas, para além do costumeiro cumprimento, uma vénia mal dobrada, aquela mole humana mantinha-se silenciosa, num descampado dominado por quatro mangueiras ramalhudas, onde pontuavam já frutos amadurados.

O régulo Momola adiantou-se ao grupo, juntando-se aos recém-chegados, acompanhado de mais três ou quatro elementos, seus conselheiros tribais,, e um outro negro, ainda novo, armado de caçadeira: era caçador privativo de um europeu de Namuno que, casualmente, ali havia acampado e se dispusera a participar na caça ao leão.

Formou-se, ali mesmo, um “conselho da revolução” da caça, em que o Carlos desempenhou a cómoda função de moderador. Reconhecia, intimamente, ser o menos credenciado para ditar estratégias. Mas mostrou-se interessado e participativo e, sobretudo, prestava especial atenção aos experientes alvitres que íam surgindo. Estava ali, mais ou menos com a função do rei de Espanha: não governa, mas é um símbolo...

O plano para caçar o leão não era assim tão complicado! Consistia tão só em formar uma linha de nativos com os instrumentos sonoros e armas rudimentares de um lado do hipotético esconderijo da fera, enquanto os elementos com armas de fogo se emboscavam nos previsíveis pontos de fuga.