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terça-feira, 6 de outubro de 2009

O BAZUCA - Não há amigo que eu não "veja" pela voz!
















Em 1971................................................................. Quase 40 anos depois


1971. Vivia-se mais um ano da guerra. Nas fraldas da Serra Mapé, na povoação de Muaguide, em Cabo Delgado, estava sediada uma companhia militar composta, na sua maioria, por naturais ou incorporados em Moçambique. Era, também, naquele quartel que o Grupo Especial (G.E.) 201 tinha a sua base de actuação. Com cerca de sessenta homens escolhidos entre milícias, recuperados e elementos da população, esta força era enquadrada por quadros do Exército.
Um dos grupos de combate da Companhia, era integrado pelo Furriel Basílio, mais conhecido pela alcunha de Bazuca. Era um dos mais joviais, divertido e de relacionamento fácil e com um espírito de companheirismo muito acima da média.
Dele guardei sempre recordações marcantes daquele ano de brasa em que partilhámos alguns momentos de risco, mas, também, situações de são convívio e amizade.
Lembro que, nos curtos períodos que, entre operações, o G. E. por mim comandado regressava à base, ao quartel comum, para repouso de alguns dias, era sempre recebido com um convite do Bazuca para um petisco especial que ele previamente organizara e que, via de regra, constava duma carilada, dum cabrito ou frango de churrasco (à cafreal, como dizíamos), regado sempre por um garrafão de Aveleda, o "cabeça de giz", como era denominado entre o pessoal.
Todas essa situações, entrecortadas por umas disputadas sessões de King, foram reforçando os laços de companheirismo e amizade que se vieram a manter para lá dos anos de luta.
Uma das picadas mais perigosas da zona de actuação comum, liga Muaguide ao Meluco(Kuero), uma zona que era, desgraçadamente, marcada pelo constante "semear" de minas e emboscadas por parte dos guerrilheiros da Frelimo.
Tal realidade obrigava a que se procedesse a uma "picagem" e escolta de viaturas, numa média de duas por semana, sempre que uma coluna rodava por aquele itinerário. Essa missão era incumbida a uma força da companhia, normalmente, por escala.
Em data que não consigo recordar-me, mas que andará por meados de 1971, estava eu na mata com o G.E., a norte do aldeamento de Sitate, a zona das minas e emboscadas, numa acção de detecção de grupos de guerrilha que utilizavam aquela região para se infiltrarem para sul.
A operação decorria sem algum contacto até que, às primeiras horas do segundo dia de progressão, fomos alertados pelo som de prolongada metralha, tiros e morteiradas, a meia dúzia de quilómetros , a sul do local onde nos encontrávamos.
Não tivemos dúvidas: tratava-se de mais uma emboscada na fatídica zona dos cajueiros. E foi em passo de corrida, em formação de batida, que nos dirigimos para o local, no intuito de interceptar os atacantes na retirada e socorrer os emboscados.
Chegados à picada, lá estava o Furriel Bazuca e o pessoal do seu grupo, ainda pouco refeitos da acção inimiga.
Dirigi-me a ele e notei-lhe um semblante de sofrimento que me levou a pensar o pior:
- Bazuca, que tens, estás ferido?!
- Olha o meu relógio, olha o meu relógio! -
respondeu-me, em tom agitado e nervoso.
Preocupado, imaginei que estivesse ferido no pulso e que fora uma bala ou estilhaço a desfazer-lhe o relógio.
- Mas estás ferido?
E a resposta chegou-me, com alívio e não menos espanto:
- Não, pá! Parti-o ao atirar-me para o chão, mas era um relógio novo!...
O tempo foi passando, esquecido o incidente, depois de outras emboscadas e minas, outros momentos de descontracção e convívio no quartel se seguiram.
Decorria o mês de Dezembro do mesmo ano, já eu recebera a esperada notícia de que nos primeiros meses de 1972, acabaria a minha "guerra", o Bazuca e a sua Secção saiu cedo, se me não falha a memória, para abastecer os homens destacados junto ao Moja para protecção duma ponte estratégica na estrada de Macomia-Ancuabe. Sentava-se ao lado do condutor da primeira viatura, seguido por um Unimog 411, com o restante pessoal.
Ainda não era passada uma hora, encontrava-me na parada do quartel, quando me apercebo que uma das viaturas se aproximava em marcha louca, com o condutor, o Cascais, esbracejando e gritando:
- Emboscada, emboscada!
Interrogado pelo destino da outra viatura e dos homens, disse não saber. Deduzi que, enquanto a primeira viatura, onde se deslocava o Bazuca, havia caído na "zona de morte", a da rectaguarda conseguira recuar antes de a atingir.
Reunidos alguns homens disponíveis, na viatura do Cascais e numa Berliet, acelerámos em direcção ao local do ataque, a menos de quinze minutos da base, entre o aldeamento de Incocotelo e o do Moja.
No local, nem sinais do Bazuca e dos seus homens, nem, tão pouco, dos atacantes. Seguimos em direcção ao Moja, onde já se encontrava o pessoal emboscado. O Único ferido era o próprio Bazuca, com uma bala alojada no braço que inchava assustadoramente.
Sem condições de assistência local e porque urgia a sua rápida evacuação, o capitão que comandava a companhia decidiu pelo avanço até Ancuabe, onde existia um aeródromo improvisado. Avançámos e aguardámos a chegada dum avião civil - penso que pilotado pelo José Quental - e embarcámos o Bazuca, em profundo sofrimento.
E não esqueço, no momento em que entrava para a aeronave, o desabafo que lhe saiu titubeante, mas com ironia:
- Porra, Branquinho, antes fosse mais um relógio!
Não voltei a encontrar o Basílio, em Moçambique. A guerra havia acabado ali para ele e, um mês depois, para mim.
Anos mais tarde, já em Lisboa, quando tive a enorme alegria de o encontrar, sem mazela de monta no braço atingido, o Bazuca estava invisual, por problemas relacionados com diabetes.
Mantinha, e mantém, o mesmo espírito amigo e brincalhão, dando prova da sua força de encarar a vida e os seus reveses. E não me surpreendi, quando, em resposta a uma alusão minha ao seu "azar", me respondeu:
- Não te preocupes, não há amigo nenhum que eu não "veja" pela voz!
E assim é, de facto. Nos encontros anuais em que juntamos dezenas de ex-combatentes, não há um que ele não reconheça, logo à primeira saudação.
Não se perdeu a sua alma solidária. Nesses encontros é ele próprio um dos impulsionadores e quem mais anima os companheiros que, também por isso, o estimam como a um irmão.